Crônica - Cara-de-Paisagem


O dia estava tenso. Discussões sem motivos, urgências sem importância, preocupações sem causas, e-mails sem letras minúsculas. Enfim, um dia normal como outro. As pessoas gostam de viver em ambientes estressantes. Ele pensava: "Eu, hein? Parecem que gostam de ter hipertensão, mau-humor ou tomar chá de carqueja." Dia tenso, todos mau-humorados, até que a uma colega vira pra ele e diz:

"- Queria ficar assim que nem você, com essa cara-de-paisagem."
Ele olhou para ela com ar de interrogação no semblante, que nem foi preciso balbuciar  algum som e ela emendou:

"- É, cara-de-paisagem. O circo pode estar pegando fogo, que você fica com a mesma cara. Queria ser assim como você."
Deu de ombros e sorriu. Não soube se foi um elogio ou uma crítica, mas enfim, continuou a fazer o que precisava ser feito. Conclusão: talvez terminasse tudo bem antes, sem qualquer intempestividade. Mais tarde contou a um amigo o que tinha ocorrido e ele concordou com ela, a colega. Pediu então que lhe explicasse o que era essa tal cara-de-paisagem.

"- É como você sempre transparece quando o mundo está caindo a sua volta e você continua na sua, tranquilo, calmo, sereno. Você não fica desesperado e estressado junto com o ambiente."
Novamente não sabia se era um elogio ou uma crítica. Cara-de-paisagem. Ouviu essa expressão mais algumas vezes nas próximas semanas. Interessante como algumas gírias e neologismos passam-nos despercebidos até que alguém começa a usar com a gente. 


Finalmente, depois de um bom tempo ouvindo por aí, entendeu o sentido da expressão cara-de-paisagem. Cara-de-paisagem, se ele fazia, era porque não gostava de ficar desperdiçando energias com coisas infrutíferas e, se não fazia isso, ele não precisava externalizar falando alto, mudando semblante, sendo agressivo, ríspido ou grosseiro, porque isso não vai ajudar a resolver nada. Então, ficava na dele, concentrava-se no que deveria ser feito e oferecia sua ajuda. Se queriam, tudo bem, se não queriam, tudo bem também. E assim seguia a vida.


Lá em matemática, se aprenderam o mesmo modo, ensinaram-lhe que qualquer coisa vezes zero, continua sendo zero; por isso não valia a pena colocar qualquer esforço aonde não produziria nada. Gastar tempo e energia reclamando, procurando culpados, falando mal dos outros? Se quer mesmo que fazer isso junto com alguém, que não fosse com ele. O seu tempo e suas energias eram um bem precioso, por isso preferiria dedicá-los a coisas bacanas, felizes e, porque não, divertidas. Inclusive no trabalho. Por isso, que se o circo estiver pegando fogo ou o Apocalipse chegar na terra, ele continuaria a externalizar a sua mesma cara, a sua já famosa cara-de-paisagem. 

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