Crônica - Trinta Dias


Aquilo já estava martelando em sua cabeça ha algumas semanas. Sabe aquele tipo de ideia, quase fixa, como que entalhada em pedra? Era assim. E a cada segundo que passava,  a agonia aumentava. O passar do tempo só piorava as coisas e o dia seguinte era esperado com um certo suplício. Quando ele chegava, era um alívio. Ainda bem. Mas não durava muito, pois logo depois, a presença dele se tornava um outro suplício. E assim seguiam os dias, em um círculo vicioso.

No início, foi amor. Amor que nasceu como a semente de árvore que insiste em brotar entre as rachaduras da calçada de concreto. Amor que nasceu como uma forma teimosa de defesa. Certa vez, bateu um papo com seu amigo Fábio, que para ele era um romântico incorrigível e o maior especialista em amor que conhecia, que para se ter amor é preciso ser herói. Amar e ser herói são a mesma coisa. Mas demonstrar o amor não era ser qualquer tipo de herói não. Tinha que ser como Aquiles da mitologia grega, ou como os caubóis honrados do velho oeste, ou como os bombeiros destemidos que entravam em prédios em incêndio, ou ainda como aqueles heróis japoneses que nunca temiam a morte e enfrentavam monstros do tamanho da cidade em suas roupas coloridas.

Logo depois de ter sido desprezado por uma garota ingrata, bonita e antipática, que o desdenhou para preferir um gordão molenga que tinha carro importado e falava mal dela pelas costas, ele viu que merecia coisa melhor. Muito melhor. A morena de cabelos escuros não muito compridos, olhos amendoados, sorridente, simpática, falsa magra, era aquela. Colega de turma da faculdade, ela era educada e doce, era uma pessoa que emanava luz e passou a iluminar seus dias.

E começou. Aproximava-se, puxava conversa, cumprimentava, sorria, trocava algumas palavras e alguns sorrisos. Gostava dela em segredo. Os momentos de distância eram dolorosos para ele. E o tempo se esvaindo, muito mais. Então, aconteceu o que seu amigo Fábio intitulou de "Os Trinta Dias Que Mudariam Sua Vida". Não, não era título de nenhum filme. Botou na cabeça que tinha somente esse tempo para juntar forças, criar coragem e declarar seu amor. Mas seria amor? Estava ele pronto para ser herói? Concluiu que até o esgotamento de seu prazo teria que estar. E os dias foram passando, os fins de semana se sucedendo. E nada. A cada segundo, a hora fatal se aproximava.

E, como nas histórias em quadrinhos, que ele tanto gostava, as histórias caminhavam para seu desfecho. Respirou fundo para enganar aquele nó no estômago, e no pátio da faculdade, caminhou até ela, com se cada passo pesasse toneladas. Aproximou-se dela, cumprimentaram-se, engoliu seco e tomou coragem:

"- Olha, a gente precisa conversar em particular uma hora dessas. Você poderia me lembrar?"

"- Sim. Podemos sim."

"- Já estou de saída, mas que tal amanhã? Amanhã no final da tarde?"

Ela balançou a cabeça numa afirmativa. Se despediram e ele foi embora com aquele alívio, aquela sensação de ter conseguido.

Chegou o dia seguinte. Pânico. Coração saltitante. Suor frio nas mãos. Nó no estômago. Garganta seca. Sangue correndo acelerado. Tocou em seu braço e chamou-a de canto:

"- Podemos falar agora?"

"- Pode ser sim. O que é?"

"- É meio complicado... como posso dizer... não quero que fique brava comigo..."

"- Nossa! Você está me deixando assustada!" exclamou ela, os lindos olhos se arregalando.

"- Tá bom, então eu vou falar."

Chamou-a para mais perto. Ela obedeceu e já percebeu do que se tratava. Tentou sair pela tangente.

"- Mas é um assunto em particular mesmo..."

"- Bom, então me fala via MSN."

"- Pode ser. Que horas você vai entrar?"

"- Vou estar online umas oito da noite."

Concordou. Eram quase cinco da tarde quando ele assinou a sentença de seu destino. Foi para casa, tomou um banho, refletiu na sua jornada até aquele momento. A hora tão temida estava chegando. Foi para o seu quarto, deitou em sua cama, ligou o notebook e plugou seus fones de ouvidos para ouvir algumas músicas. Um pouco antes da hora marcada, o nome dela ficou online, com um quadradinho verde do lado. Começaram a trocar mensagens eletrônicas. E pelo ar, pela rede Wi-Fi, que as palavras dela chegaram. Seu amigo Fábio conta que naquela noite, os fones de ouvido emitiram um soluço, os elétrons ficaram comovidos e a tela de LCD do notebook chegou a chorar quando chegou a mensagem derradeira: 

"- Agora que me caiu a ficha, acho que você confundiu um pouco as coisas. Não vou te iludir, mas acho que o que rola entre a gente é só amizade."

Ele leu. Releu. E começou a choramingar.

Não se sabe se foi uma queda na conexão, ou uma interceptação de algum hacker, ou até algum sistema de criptografia, mas sua tentativa de comunicação com o Céu não deu certo.

Os trinta dias se passaram. Suas lágrimas secaram. As feridas em seu coração reduziram-se a apagadas cicatrizes. Quaisquer tipos de ressentimento e mágoa acabaram por caducar. Voltaram a se encontrar no pátio da faculdade. Eram amigos, conversavam bastante. Riam muito juntos. Contudo, sempre que se abraçavam para se cumprimentar, uma lápide de mármore surgia do nada e caía bem em cima de suas cabeças, pegando-os sempre em cheio. E quando olhavam o epitáfio gravado na pedra, abraçavam-se e choravam. Até ficaram íntimos nessa troca de lágrimas, ranho e soluços.

E o epitáfio era, gravado em caracteres maiúsculos: CTRL+ALT+DEL.

1 Comentários

F. disse…
Excelente este texto Dino! muito bom, me prendeu a atenção do inicio ao fim! esta cada vez melhor (: