Crônica - Gentileza





Dormi meio tarde. Acordei meio cedo. Me espreguicei, levantei, fui fazer minha profilaxia matinal e em frente ao espelho vi que estava brotando uma espinha na testa e falei alto comigo mesmo:

"- Essa adolescência que não passa!"

Não que eu fosse adolescente, mas com quase 30 anos e ainda ter espinhas? Bom, quem sou eu pra reclamar, né? Espremi a danada, passei um pouco de pasta de dente em cima, tomei um café da manhã e lavei a louça. Estava quase de férias.

Precisava ir no Centro da cidade. Resolvi ir de ônibus. Afinal tinha todo o dia de folga. Já que ia descer aproveitei para levar o lixo lá na lixeira do condomínio, duas sacolinhas cheias. Desci a escada cantarolando a música do Donkey Kong. Encontrei minha vizinha octogenária, Dona Gladis, subindo as escadas bem devagarinho.

"- Bom dia, Dona Gladis! Só alegria!"

"- Bom dia garoto! Opa! Aí sim! Deve ter visto o passarinho verde logo cedo hoje!"

"- Hahaha! Ainda não, ainda não..."

"- Depois você me conta o segredo! Sempre que te vejo está com sorriso no rosto!"

"- Pódexá! Mas sou assim mesmo... tem dia que eu acordo feliz... outro dia eu acordo alegre... e assim vou vivendo! Hahaha!"

"- Queria ser assim, queria ser assim..."

"- E pode! Hahaha! Bom dia pra senhora! E qualquer coisa, me chama!"

"- Bom dia! Pode deixar... Chamo sim..."

Continuei descendo as escadas, voltei a cantar a musiquinha do Donkey. "Garoto". Primeiro a espinha, depois minha vizinha. Dois elogios em um só dia. Lá embaixo, encontrei umas crianças brincando em frente a entrada do bloco.

"- Bom dia, Carol! Dia, Denise! Bruna!"

"- Bom dia, tio!"

E segui até a lixeira. Ouvi o que conversaram entre si:

"- Ele é seu tio?"

"- Não é meu tio de verdade. Mas meu pai disse que ele é professor. Então é tio, né?"


"- Ah... é verdade. E também ele é muito alto para ser seu tio. Seus pais são baixinhos..."

"- Cala a boca, ô!"

E continuei rindo depois de ouvir aquilo. Crianças. As lógicas delas são fenomenais. Perto da portaria vi o síndico:

"- Bom dia, Giácomo!"

"- Bom dia, Dinão! Já de férias?"

"- Quase, quase! E você? Só alegria?"

"- Opa! Só alegria! Luminárias quebradas, vizinhos que reclamam, crianças fazendo bagunça, todo mundo querendo alugar as churrasqueiras no mesmo final de semana. De resto, só alegria!"

"- Hahaha! Isso aí! Quem manda ser síndico?"

"- Pois é..."

Joguei o lixo na lixeira, saí do condomínio e fui ao ponto de ônibus, que estava vazio. O pessoal ia chegando. Eu cumprimentava, dizendo bom dia a todos. Alguns estranhavam, mas respondiam. Outros nem respondiam. Fazer o que, né? Pelo menos eu estava fazendo minha parte. Uma amiga minha, Silvana, chegou no ponto de ônibus e ficamos conversando um pouco. Efemeridades. Quando o ônibus chegou, entramos e sentamos juntos. Lá pelas tantas ela me perguntou:

"- Nossa! Você está com uma energia boa! Por que está tão feliz?"

"- Sei lá... Acordei hoje cedinho, ainda vivo, estou quase de férias, resolvi ir de ônibus para o centro da cidade, lembrei de uma música de videogame... Não sei mesmo... Mas a gente precisa ter um motivo para estar feliz? 

"- Hahaha! Não, não precisa... Mas é que é incomum logo cedo a gente encontrar alguém assim. Ainda mais no ônibus. Só você mesmo, Dino!"

"- Será? Será?"

"- Você é figura!"

E voltei a cantarolar a música do Donkey Kong. Tinha resolvido naquele instante continuar daquele jeito. E o dia acabou sendo, gentilmente diferente.

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